segunda-feira, 29 de agosto de 2016

A verdade [Perseu Abramo]

Se você contar uma mentira repetidas vezes, com ar sério, sem dar ao interlocutor sequer a possibilidade de colocar em xeque a veracidade da armação, em pouco tempo ela se transformará em verdade.


Se, além disso, você tiver amigos que o temam e que se disponham a repetir e a divulgar a sua mentira como se fosse uma verdade, ela se transformará, em breve tempo, num sábio axioma.

E se você for violento no rejeitar as armações contrárias, implacável no repudiar os que não compartilham da sua armação, inexorável no caluniar – não os argumentos – mas a honorabilidade dos que ousarem divergir de sua palavra inicial, num instante a modesta mentira se transmudará num dogma irrefutável.

E assim, verbalizando a realidade e, depois, transformando a realidade verbalizada, de acordo com as suas conveniências, você poderá manipular, se não os homens e as suas consciências, pelo menos o seu julgamento das coisas. 

E por que não as suas consciências? Se você manejar o julgamento dos homens sobre as coisas, os homens, para não parecerem a si próprios incoerentes, amoldarão suas consciências de acordo com o julgamento que tiverem feito das coisas; e, portanto, você estará manipulando as suas consciências. 

E por que não os próprios homens? Se você puder dirigir a consciência dos homens para o caminho que você escolher, você não estará guiando os próprios homens a seu talante, sem que, inclusive, eles disso se apercebam.

E, pois, se você tiver o cuidado de ser coerente com a sua mentira inicial, se você tiver o cuidado de eliminar opositores, corromper os divergentes, ameaçar os renitentes, amedrontar os incrédulos você poderá lhes mostrar uma rosa e lhes dizer: 

“isto não é uma rosa: é um rato! Os ratos devem ser liquidados: portanto, matem-no!” 
E todos destruirão a rosa, certos de que estão matando um rato. E você ainda poderá lhes dizer: “não é verdade que vocês estão oprimidos, famintos, entravados, escravizados! Vocês estão livres, opulentos, bem nutridos e satisfeitos!” 

E todos sorrirão beaticamente, e se curvarão agradecidos, certos de que estão livres, opulentos, bem nutridos e satisfeitos.

Para repor a verdade no lugar da mentira, para arrancar os homens e suas consciências da garra do engano, para mostrar a todos que uma rosa é uma rosa, não é um rato, é preciso revolucionar as coisas, ousar o audaz, atrever-se ao inesperado, tentar o nunca tentado.


* Perseu Abramo publicou este texto em fevereiro de 1961, no jornal Folha de São Paulo.